E tendo o acima articulado em atenção que nos propomos a analisar o alcance legal e político deste Acórdão do Tribunal Supremo, proferido no dia 15 de Abril de 2025 e assinado pelos Juízes Conselheiros Maria Isabel Rupia, Luís Mondlane, João Carlos Beirão e António Namburete, no âmbito do processo de recurso sobre a liberdade condicional interposto pelo Advogado Abdul Gani, causídico da arguida Ângela Leão.
Para entender bem este caso, é imperioso fornecer algum contexto e quadro temático para o estimado leitor entender algumas questões e situações de direito que são relevantes.
Contexto Político: O Processo 1/PGR/2015
Após a tomada de posse do Presidente da República Filipe Jacinto Nyusi, a PGR abriu o processo supracitado, indicando a sua vontade política de encetar investigações para apurar o que teria acontecido na contratação e execução dos projectos das empresas ProIndicus, EMATUM e MAM, no âmbito da implementação do Sistema Integrado de Monitoria e Protecção da Zona Económica Exclusiva de Moçambique (SIMP-
ZEE).
Importante salientar que, em 2015, não havia conhecimento público generalizado da existência destas empresas, ou mesmo, da existência de qualquer tipo de problema relacionado a elas. Aliás, acabava-se de fechar um ciclo governativo liderado pelo Presidente Armando Guebuza, durante o qual não houve indicação de existir qualquer problema com as empresas.
Facto curioso é que mesmo antes da Auditoria Forense da Kroll e da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) a Procuradoria-Geral da República (PGR) já havia aberto o processo, não se sabendo, ao certo, com base em que matérias, pois não havia queixa vinda de nenhuma instância. Este facto é demostrativo que havia uma vontade política, senão uma instrução clara de se problematizar este assunto. Com que objectivo? Deixamos o leitor para trazer as respostas.
Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI)
Em Plenária da Assembleia da República foi criada a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), por deliberação da Assembleia da República 16/2016, datada de 1 de Agosto de 2016, com o objectivo de “Averiguar a situação da dívida pública em Moçambique”. A CPI era constituída pelas bancadas parlamentares da FRELIMO e do MDM, visto que a RENAMO se absteve de integrar tal comissão. O Partido MDM esteve representado pelo Deputado Venâncio Mondlane e a FRELIMO pelos Deputados Eneias da Conceição Comiche (Presidente da Comissão), Sergio Pantie (Vice-Presidente), José Katupha, Lucas Chomera, Francisco Mucanheia, Luciano de Castro, Alberto Matukutuku, Jaime Neto, Olinda Mith e Esmeralda Mulemba.
No seu “Ponto 3. Objectivos”, o relatório da CPI arrola objectivos tão concretos e relevantes para a prossecução da sua missão, contudo, em nenhum dos seus 19 objectivos específicos (de A a S) há alguma indicação de apurar as contratações e pagamentos feitos pela Privinvest aos seus fornecedores, consultores e parceiros internos e externos, porquanto mostravam-se fora da sua alçada.
No seu “Ponto 4. Metodologia”, a CPI se propunha a auscultar as entidades relevantes para esclarecer este caso intrincado e, do role das entidades ministeriais, empresas contratadas, empresas contratantes, empresas fornecedoras, em nenhum lugar há a indicação de se auscultar agentes privados, quer nacionais ou estrangeiros. É por essa razão que, de todos os arguidos acusados, julgados e/ou condenados, apenas duas pessoas, nomeadamente António Carlos do Rosário e Gregório Leão é que compareceram perante a CPI para prestar esclarecimentos, e mais ninguém.
A CPI produziu um relatório interessante cujo conteúdo foi alvo de um contraditório por Venâncio Mondlane (MDM) que não concordava com certas recomendações. Numa dura discordância, contida num relatório de 43 páginas, Venâncio Mondlane protesta alegando que “A CPI não pode ser subserviente ao que o Governo acha que melhor convém para servir um cardápio ao fórum da investigação. Dito de outro modo, a CPI não pode ser uma caixa-de-ressonância das manobras degenerativas de um Governo de continuidade criminosa.”
Como se pode depreender, Venâncio Mondlane denunciava que a criação desta Comissão Parlamentar de Inquérito visava criar condições para se conduzir uma investigação cuja finalidade era criar uma narrativa que justificasse a continuidade criminosa de um Governo. Venâncio Mondlane aludia a “continuidade criminosa” às pretensões propaladas de um possível terceiro mandato inconstitucional.
Como que a confirmar as desconfianças de Venâncio Mondlane, a CPI inseriu nas suas recomendações no parágrafo “1ª) A existência ou não de indícios de aproveitamento ilegítimo e ilícito dos fundos públicos por pessoas privadas, seja singular ou colectivas, no âmbito da contratação das dívidas das três empresas e da prestação das garantias pelo Estado.” Ora, com esta recomendação, a CPI já mostrava o sentido e direcção que a PGR deveria tomar com a sua auditoria. Vejam que a recomendação orienta para se averiguar pessoas que participaram no âmbito da contratação das dívidas. No entanto, sabemos que, por sinal, todas as pessoas envolvidas na contratação das dívidas estão fora do processo das dívidas ocultas. Estranho, para dizer o mínimo.
Outra estranheza prende-se com a recomendação “3. O Governo deverá adoptar medidas concretas para a rentabilização das 3 empresas, mantendo-se a posição de que as dívidas devem ser pagas pelas empresas, e não cabendo nenhum ônus ao erário.” Esta é, sem margem de dúvida, uma excelente recomendação que visava salvaguardar o interesse do povo moçambicano.” Paradoxalmente, e contra qualquer senso, as dívidas ocultas foram inseridas na Conta Geral do Estado (CGE) contra as recomendações da CPI. A mando de quem e com que objectivo? Como o Parlamento votou a favor de um orçamento que incluía as dívidas ocultas mesmo sabendo que transgrediu uma das mais sensatas recomendações da sua própria CPI? O que se pretendia com esta decisão?
Para nós a resposta é simples e única: visava-se a problematização e consequente detenção de bodes expiatórios de modo a proteger os verdadeiros responsáveis e criar uma falsa luta anticorrupção direccionada ao antigo Governo no sentido de ganhar simpatias junto do povo para justificar um tal terceiro mandato. Para tal, era preciso fazer muito barulho à volta do caso, usando todos os meios possíveis e imaginários para plantar na cabeça das pessoas de que aquelas pessoas eram as únicas responsáveis pela desgraça do povo. Mobilizaram, jornais, canais de televisão e comentadores, criaram novos newsletters electrónicos, arregimentaram jornalistas, procuradores, juízes e advogados para difundirem a propaganda.
Tudo isto culminou naquele reality show do julgamento das dívidas ocultas na Tenda da BO que acabou sendo um malogro, pois por falta de matéria para provar o envolvimento de certas pessoas visadas para serem condenadas, o Juiz Efigénio Baptista acabou mudando o objecto da causa de “dividas ocultas” para “subornos
A Auditoria da Kroll
A Auditoria Forense da Consultora Kroll surge na sequência das sessões regulares de trabalho entre o Governo de Moçambique e o FMI no âmbito do acordo-quadro (Framework Agreement) do programa de ajuda financeira ao Governo de Moçambique. Na sequência, teria saltado para o conhecimento do FMI que o país havia contraído uma dívida comercial, suportada com as garantias do Estado para o financiamento de uma frota de atuneiras por parte de uma empresa moçambicana, no caso a EMATUM. Das diligências e questionamentos havidos entre as partes, eis que se descobre que havia mais dívidas por esclarecer do que havia sido esclarecido até aquela altura.
Como consequência, é no meio destas suspeições que os parceiros de apoio programático, todos membros do FMI, solicitam uma auditoria forense às empresas e os respectivos projectos. Sem concurso internacional, é convidada a consultora britânica Kroll para concretizar a tarefa de trazer a verdade à tona.
No seu plano de trabalho submetido a 21 de Outubro de 2016, a Kroll definia que o seu plano de trabalho de auditoria forense contemplava, na sua primeira fase, a) Obtenção de relatos abrangentes das principais partes interessadas; b) Solicitação e obtenção de informações relevantes das Empresas de Moçambique e das autoridades competentes de Moçambique; c) Realização de encontros com determinadas pessoas singulares conforme considerado conveniente pela PGR; e d) Revisão e análise inicial da documentação e de outros materiais relacionados com as Empresas de Moçambique.
Para obter as informações relevantes necessárias para esclarecer o caso, referem que para além das informações solicitadas às Empresas de Moçambique, a recorreram à emissão de cartas de solicitação formal, com a assistência da PGR, dirigidas às seguintes entidades:
Empresa Contratada;
Credit Suisse e ao VTB Capital;
Banco de Moçambique (e a determinados bancos locais de Moçambique);
Ministério das Finanças de Moçambique; e
Outras entidades, incluindo a Ernst & Young (os auditores externos das Empresas de Moçambique), ao Ministério da Defesa e ao Serviço de Informação e Segurança do Estado (“SISE”).
Como se pode ver, o roteiro da kroll era claro e objectivo para o esclarecimento do caso, não revelando em si nenhuma previsão de interacção com agentes privados individuais. Aliás, nenhum dos indivíduos privados foi notificado para prestar qualquer tipo de esclarecimento tanto a Kroll e muito menos à CPI.
No seu relatório, a Kroll produz uma lista de 21 pessoas que depois foi refinada para 18 elementos, todos funcionários de estado que tiveram um papel activo na contratação das dívidas. Dessa lista, apenas duas pessoas foram constituídas arguidos do processo das dívidas ocultas, por sinal, as mesmas que seríamos ouvidas pela Comissão Parlamentar de Inquérito. Certamente todos se lembram dos “Indivíduos A, B, C, etc” que todos ficamos a adivinhar quem, de facto, seriam.
Contexto Legal
Por uma questão metodológica importante circunscrever os factos jurídicos no espaço e no tempo para determinar a lei aplicável em qualquer situação. Do ponto de vista do espaço, os eventos importantes ocorrem em Moçambique, a saber, as reuniões de planificação, a criação das empresas, assinatura dos contratos de fornecimento e de financiamento, bem como de outras decisões relevantes determinantes para contratação das dívidas.
O Código Penal vigente à data dos factos
Do ponto de vista temporal, todos esses eventos acima indicados ocorreram entre Março de 2011 e o segundo trimestre de 2014 e o código penal vigente na altura dos factos era o código penal aprovado pela Lei 35/2014 de 31 de Dezembro.
Para o objectivo deste trabalho jornalístico, vamos nos ater aos crimes relevantes constantes da acusação proferida pela PGR, nomeadamente o Peculato de Uso e o Branqueamento de Capitais. Como dissemos anteriormente, é preciso ter em conta o momento da perpetração do crime (tempus delicti) para fazer a análise dos factos. A pergunta central é esta: quando é que cada facto foi praticado e, na altura, qual era a lei vigente. Se nessa altura o facto não era tipificado como crime, então não era crime. Este entendimento está contido no próprio código penal no Artigo 1 (Conceito de crime), definindo o crime ou delito como sendo o facto voluntário declarado punível pela lei penal.
Adiante, o Artigo 3 (Aplicação da lei penal no tempo), é abundantemente claro quando determina, de forma inequívoca, que “A lei penal não tem efeito retroactivo […]”. O código penal só pode ser usado para julgar e condenar actos que à data dos factos já eram tipificados como sendo crimes. Por mais que, eventualmente, tal facto venha ser tipificado como crime, “o código penal não pode ser aplicado retroactivamente, a menos que seja para beneficiar”.
Porque o código penal vigente na altura da acusação proferida pelo Ministério Público era a Lei 35/2014, a PGR recorreu a este instrumento, que reza o seguinte:
Artigo 515 (Peculato de Uso) O servidor público que fizer, ou permitir que outro faça uso para fins alheios àqueles a que se destinem de veículos ou de outras coisas móveis, públicos ou particulares, que lhe forem entregues, estiverem na sua posse ou lhe forem acessíveis em razão das suas funções, será punido com pena de prisão até um (1) ano e multa de seis a doze salários mínimos.
Concomitantemente, é importante reter como o Artigo 522 estabelece o conceito de servidor público, como sendo a pessoa que exerce mandato, cargo, emprego ou função em entidade pública, em virtude de eleição, de nomeação, de contratação ou de qualquer outra forma de investidura ou vínculo, ainda que de modo transitório ou sem remuneração. No seu segundo, o artigo refere que se entendem como sinónimos de servidor público os termos funcionário, agente do Estado, empregado público, agente municipal ou qualquer outro similar, que se utilize para referir-se à pessoa que cumpre funções em entidade pública.
Em relação ao crime de branqueamento de capitais importa referir que não se encontra tipificado nesta lei 35/2014. A PGR, recorreu, porém, à Lei 7/2002 de 5 de Fevereiro, e a Lei 14/2013 de 12 de Agosto sobre a Prevenção e Combate ao Branqueamento de Capitais e Financiamento ao Terrorismo.
Para ambas leis, serve-nos bem o saber académico segundo o qual “O crime de branqueamento de capitais, é um crime antecedente uma vez que pressupõe que tenha sido praticado um facto ilícito típico anterior e está intimamente ligado a organizações criminosas internacionais que se servem da mais alta tecnologia para prosseguir com os seus intentos.” (Nazareth, 2009). Isto é, este crime para ocorrer exige um crime conexo. Com efeito, a PGR elegeu o Peculato, para os funcionários de Estado e “Falsificação de outros documentos.” para os funcionários Privados como sendo os crimes conexos.
Outrossim, porque o Código Penal é a Constituição da República em acção, vejamos como o Código Penal traduz os comandos constitucionais relativamente aos actos ou factos praticados. O CP, no seu Artigo 2 diz “O facto considera-se praticado no momento em que o agente, ou no caso de omissão, devia ter actuado, independentemente do momento em que o resultado típico se tenha produzido”. Em outras palavras, o crime é crime no momento em que é praticado, e não no momento em que é descoberto. Se o acto foi praticado numa altura em que a lei não tipificava o acto como sendo crime, não venha ninguém anos mais tarde dizer que houve crime, pois quando o acto foi praticado ainda não era crime.
O Código do Processo Penal
Na altura dos factos, a Lei em vigor era Código de Processo Penal aprovado pelo Decreto n.º 16489 de 15 de Fevereiro de 1929 e mandado vigorar na então colónia de Moçambique pela Portaria n.º 19271, de 24 de Janeiro de 1931. Como resultado das dinâmicas sociais depois da Independência Nacional foi aprovada a Lei 25/2019 de 26 de Dezembro, que introduz o novo Código do Processo Penal.
Em relação ao CPP, trazemos para o conhecimento do leitor este artigo que irá nos ajudar a entender a decisão dos Juízes do Tribunal Supremo, nomeadamente:
Artigo 9 (Aplicação da lei processual penal no tempo) 1. A lei processual penal é de aplicação imediata, sem prejuízo da validade dos actos realizados na vigência da lei anterior. 2. A lei processual penal não se aplica aos processos iniciados anteriormente à sua vigência quando da sua aplicabilidade imediata puder resultar: a) agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente na limitação do seu direito de defesa; b) quebra de harmonia e unidade dos vários actos do processo.
Este artigo não carece de explicações de ordem nenhuma, por ser bastante claro e explícito, bastando apenas o bom senso do aplicador da lei extrair o seu sentido e aplicar.
A pronúncia da 6ª Secção do Tribunal da Cidade
A pronúncia proferida pela 6ª Secção do Tribunal Judicial da Cidade de Maputo, assinada pela Dra. Evandra Gonçalo Uamusse, toda ela foi baseada no Código Penal publicado pela Lei 24/2019, de 24 de Dezembro, e não na Lei 35/2014 de 31 de Dezembro.
É esta a situação de concurso de leis no tempo que traz interpretação e conjugação das leis para o benefício dos arguidos. Há uma corrente que entende que os arguidos são beneficiados por uma lei, enquanto outros entendem que a outra lei é a que mais os beneficia.
Porque o crime de branqueamento de capitais exige um crime conexo, a PGR foi associando com o Crime de Peculato (para os funcionários públicos) e os crimes de Peculato e Uso de Documentos Falsos (para os funcionários privados). E é por esta razão que esta encenação gira à volta destes crimes. Por quê? Porque, a medida regressiva ao crime de branqueamento de capitais é a confiscação de todos o património adquirido pelos infractores. É aqui onde reside o cerne deste processo. Não tem nada a ver com o esclarecimento do caso das dívidas ocultas, mas sim com as artimanhas para confiscar o património dos arguidos deste caso (fictício). Os verdadeiros protagonistas do caso das dívidas ocultas estão, muitos deles, a passear na sua classe.
Os arguidos que foram a arrastados para este caso são Ângela Dinis Buque Leão, António Carlos do Rosário, Armando Ndambi Guebuza, Bruno Evans Tandane Langa, Cipriano Cisinio Mutota, Crimildo Jossias Manjate, Elias Moiane, Gregório Leão José, Inês Moiane Dove, Manuel Renato Matusse, Márcia Caifaz Namburete, Mbanda Anabela Buque Henning, Khessaujee Iswardas Pulchand, Salvador Fabião Mabunda, Sidónio Sitoe, Simeone Jaime Mahumane, Sérgio Alberto Namburete, Teófilo Nhangumele e Zulfica Ahmad e todos eles foram pronunciados pela 6ª Secção do Tribunal Judicial da Cidade de Maputo, no âmbito do processo 18 ̸2019-C.
Destes, apenas a Márcia Namburete foi mais pronunciada, por não se achar nenhuma matéria probatória de prática de algum tipo de crime, sendo assim poupada do extenuante julgamento.
No dia do julgamento, compareceram os restantes réus perante o Juiz da Causa, o Dr. Efigénio Baptista que, após um longo e cansativo julgamento de cerca de 6 meses, decidiu absolver Mbanda Henning, Sidónio Sitoe, Khessaujee Pulchand e Zulficar Ahmad, e condenando os restantes a várias penas de prisão que variam de 10 a 12 anos de prisão.
Todos eles foram acusados e condenados, dentre vários, pelos seguintes crimes principais, que importa discuti-los: Peculato e Branqueamento de Capitais. São estes dois crimes que contabilizam o maior número de anos na sentença que lhes foi administrada. Para melhor entendimento, vamos separar cada um destes crimes para análise.
Crime de Peculato
Segundo o Código Penal publicado pela Lei 24/2019, de 24 de Dezembro, no seu Artigo 434 (Peculato), define o crime de peculato nos seguintes termos:
“O servidor público que, em razão das suas funções, tiver em seu poder dinheiro, cheques, títulos de crédito ou bens móveis ou imóveis pertencentes ao Estado ou autarquias locais, ou entidades públicas ou a pessoa colectiva, privada ou particulares, para guardar, despender ou administrar, ou lhes dar o destino legal, e alguma coisa destas levar ou se apropriar ou deixar levar ou apropriar, ou furtar a outrem, dissipar ou aplicar a uso próprio, ou alheio, em prejuízo do Estado, dessas pessoas colectivas ou particulares, faltando à aplicação ou entrega legal, é punido com a pena […].
O disposto no número anterior compreende as pessoas constituídas de depositários, cobradores, recebedores, exactores, tesoureiros, operadores ou ordenadores do Sistema de Administração Financeira do Estado (SISTAFE) […].
Ora como se pode perceber, o crime de peculato tem como agente o “Servidor Público” ou qualquer outra categoria de pessoa que desempenhe as funções descritas no número 2 do mesmo artigo.
Continuando, vamos ver, á seguir, como a lei define o “Servidor Público”. O Artigo 438 (Conceito de Servidor Público), nos fornece a seguinte definição:
Considera-se servidor público a pessoa que exercer mandato, cargo, emprego ou função numa entidade pública, em virtude de eleição, de nomeação, contratação ou de qualquer outra forma de investidura ou vínculo, ainda que de modo transitório ou sem remuneração.
Entendem-se como sinónimos de servidor público os termos funcionário, agente de Estado, empregado público, agente municipal ou qualquer outro similar, que se utilize para referir à pessoa que cumpre funções em entidade pública.
Estão previstas no número 1, também as pessoas que exercem, de facto, qualquer das funções ali referidas.
De tudo quanto a lei definiu, atribuiu, explicou, etc. sobre o “peculato” e “servidor público”, nenhum desses atributos aplica-se aos agentes privados julgados e condenado por esse crime, porquanto eles não encaixam, na forma ou no conteúdo, nas definições e conceitos estabelecidos pela lei. Pelo que, os réus Ângela Mbanda Leão, Armando Ndambi Guebuza, Bruno Langa, Salvador Mabunda, Sérgio Namburete e Teófilo Nhangumele nunca deveriam terem sido acusados, julgados ou condenados por prática do crime de peculato. Segundo ouvimos no tribunal, os agentes privados não agiram nem de facto ou de júri como servidores públicos na contratação das dívidas ocultas.
Outrossim, não pretendemos aqui que se conclua que os agentes do estado tenham praticado o crime de peculato. Mas, vamos deixar o caso deles para outro artigo, por requererem outro naipe de argumentos jurídicos a serem esgrimidos.
Branqueamento de Capitais
Em relação a este crime, urge trazer à tona uma realidade que deve ser analisada à luz da Constituição da República de Moçambique (CRM), publicada pela Lei 1/2018 de 12 de Junho. A CRM, no seu Artigo 2, diz que:
O Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade; e
As normas constitucionais prevalecem sobre as restantes normas do ordenamento jurídico. Este é um comando vital que impõe a primazia das leis constitucionais sobre todas as leis do ordenamento jurídico nacional, sendo que todas as leis constitucionais estão acima de quaisquer leis nacionais. Aliado a este comando constitucional, existe outro contido no Artigo 57 que diz:
Único: Na República de Moçambique, as leis só podem ter efeitos retroactivos quando beneficiam os cidadãos e outras pessoas jurídicas.
Aliado a este, há outro princípio de doutrina jurídica que dá substrato aos comandos constitucionais que reza Nullum Crimen, Nulla Poena Sine Praevia Lege, isto é “Não há Crime, nem Pena sem prévia Lei”. Qual é o alcance deste princípio? Isto significa que ninguém deve ser acusado e condenado sem lei. A lei sempre deve ser anterior ao crime. Isto é, um facto ou acto não tipificado na lei como sendo crime, não pode ser usado para incriminar, julgar ou condenar alguém.
Estes conhecimentos do Direito Constitucional são chamados para esclarecer que, à data dos factos relativos ao caso das Dívidas Ocultas, isto é, o período que decorre de 2011 até 14 de Fevereiro de 2019, altura em que os arguidos foram presos, os Código Penais vigentes era o Código Penal publicado pela Decreto 16489 de 15 de Fevereiro de 1929, que passou a vigorar a 24 de Janeiro de 1931 e, posteriormente o Código Penal publicado pela Lei 35/2014 de 31 de Dezembro. Ambos os códigos penais não tipificam o Crime de Branqueamento de Capitais. Isto é, de 1929 a 2019, o branqueamento de capitais nunca foi considerado crime em Moçambique, à luz do código penal.
O crime de branqueamento de capitais só seria tipificado, pela primeira vez em Moçambique, pelo Código Penal publicado pela Lei 25/2019 de 26 de Dezembro. Isto equivale a dizer que antes dessa data ninguém em Moçambique havia sido acusado ou condenado por esse crime.
Olhando para a data de 26 de Dezembro de 2019, data em que o branqueamento de capitais é tipificado como crime, e a data de 14 de Fevereiro de 2019, altura em que os arguidos foram detidos, o leitor perceberá que há um distanciamento temporal de 10 meses. Quer dizer, os arguidos das dívidas ocultas foram presos e acusados por um crime que não existia no ordenamento jurídico penal nacional. Isto é bizarro, por violar flagrantemente o sacrossanto princípio constitucional segundo o qual “Não há lei, nem pena, sem crime”. Importa lembrar aos leitores que somente a lei é que define o que é crime. Portanto, “se a lei nada diz, ninguém nada faz”. O Código Penal diz no seu Artigo 1 (Conceito de crime) que crime ou delito é o facto voluntário declarado punível pela lei penal.
Por outro lado, o Ministério Público (MP) pronunciava os arguidos, para além de outros crimes, do crime de branqueamento de capitais. É interessante notar que este crime é comum a todos os arguidos deste caso. Por quê? Por recomendação da CPI que instruiu para que se aferisse “A existência ou não de indícios de aproveitamento ilegítimo e ilícito dos fundos públicos por pessoas privadas, sejam singulares ou colectivas, no âmbito da contratação das dívidas das três empresas e da prestação das garantias pelo Estado.”
Fica claro que havia uma intenção de usar estas pessoas como parte da problematização. Todos os arguidos, têm o crime de branqueamento de capitais. O porquê assim? Exactamente para assegurar que os arguidos não se beneficiassem da metade da pena e que continuassem presos até completarem 3/4 da pena. A estratégia aqui era manter estes arguidos presos pelo mais longo período possível. Ainda bem que o acórdão do TS alerta ao TST que a prisão preventiva não pode ser superior à pena decretada.
O Acórdão do Tribunal Supremo e o seu alcance
O Acórdão do Tribunal Supremo, proferido no dia de 15 de Abril de 2025, e assinadas pelos doutos juízes Isabel Rupia, Luís Mondlane, João Beirão e António Namburete constitui uma autêntica sapiência e uma lufada de ar fresco no seio do nauseabundo, corrupto e clientelista sistema de justiça moçambicano. O Acórdão é tão eloquente e explícito que desmistifica a tal complexidade do concurso das leis.
O Acórdão faz uma pergunta básica de partida, que deveria ser feita por qualquer juiz: quando é que ocorreram os factos que estão sendo tratados no processo, e qual era a lei vigente na altura dos factos? Isto é, qual era o Código Penal e o Código do Processo Penal vigentes na altura dos factos? Aqui não há ciência espacial! Trata-se de a PGR, na sua investigação, estabelecer quando é que cada facto de que acusa os arguidos ocorreu. Trata-se de estabelecer a data, a hora e as circunstâncias. Não pode a PGR dizer, como fez na acusação provisória que “numa data e num lugar sem referência, os arguidos…” Não pode ser!!!!
O acórdão discute a questão da prisão preventiva e como ela é aplicada no concurso das leis. Como vimos acima, o princípio é estabelecer qual era a lei vigente à data dos factos, e qual é lei que beneficia os arguidos, entre a antiga e a actual, para realizar o direito constitucional de liberdade aos arguidos presos. A liberdade é um direito e a prisão é uma excepção.
Ambas as leis preveem a liberdade condicional, resultante do cumprimento da metade da pena. O código penal antigo impõe que o arguido tenha cumprido metade da pena, transitada em julgado. O actual código não exige que a pena tenha transitado em julgado, bastando para o efeito que o arguido submeta um requerimento para o Juiz Relator do Tribunal Superior de Recurso.
O juiz relator por sua vez, irá analisar o requerimento tendo em conta o quantitativo da pena já cumprido e o comportamento demonstrado pelo arguido durante a prisão, para decidir em conceder ou não a liberdade condicional. Mas, surge um, porém! A nova lei adensa as exigências impondo que para se beneficiar da liberdade condicional o arguido não pode ter sido condenado pelos crimes de peculato ou branqueamento de capitais. É aqui onde a porca torce o rabo! Acontece que todos os arguidos foram intencionalmente e maliciosamente condenados pelo crime de branqueamento de capitais. Isto não foi coincidência, mas sim intencional e proposital.
Para uma pessoa condenada pelo crime de branqueamento de capitais, a lei impõe que nessas situações os arguidos só podem beneficiar de liberdade condicional após cumprirem 3/4 da pena. A questão que o Acórdão do Tribunal Supremo levante é crucial: porque a liberdade condicional dos arguidos deve ser condicionada por um crime que, à data dos factos, não era tipificado como crime? O crime de branqueamento de capitais foi tipificado como crime pelo código penal de 2019. Nenhum código anterior a 2019 tipificava este crime.
É por esta e outras razões que o colectivo de juízes do Tribunal Supremo decidiu haver mérito no pedido de Ângela Leão de solicitar a liberdade condicional nos termos no qual o fez.
Outrossim, há um dilema que deve ser sanado pela justiça que é este. Se a prisão preventiva é extinta pela sentença condenatória, é justo perguntar: os arguidos das dívidas ocultas são preventivos ou condenados? Bem, a actual lei responde dizendo que a prisão preventiva se extingue com a sentença condenatória, daí resulta que, neste momento, os arguidos estão cumprindo a pena.
Se já são condenados, tal como diz o próprio Acórdão do TS, como entender que não tenham sido qualificados para beneficiar do indulto se, por lei, o indulto é concedido a arguidos condenados e não preventivos? É o próprio Juiz Manuel Bucuana que o diz no seu Despacho datado de 20 de Janeiro de 2025, que “Outrossim, os beneficiários do indulto são os cidadãos condenados… No caso em apreciação, os [arguidos], a pena pela qual foram condenados, na primeira instância, ficou suspensa por força do recurso interposto, logo ainda não têm estatuto de condenados…”. Ora, se não são condenados, então são preventivos. Se são preventivos, então é justo inferir que a sua prisão preventiva está largamente expirada, a partir do dia da sentença condenatória, devendo o próprio Juiz Manuel Bucuana os libertar, a bem da coerência, da justiça e da legalidade.
Por outro lado, temos a questão do recurso interposto pelos arguidos há mais de três anos no TSR. O Juiz Relator Dr. Manuel Bucuana teve sempre e continua a ter à sua discrição o poder de responder ao recurso e, deste modo, acabar esta situação de liberdade condicional. O porquê dizemos isso? Porque não vemos como o TSR irá manter a condenação dos arguidos em face dos recursos submetidos.
O Juiz Efigénio Baptista nunca deveria ter condenado os arguidos, pois nunca teve matéria para o fazer. Nem durante o julgamento houve produção de provas para sustentar a acusação. A condenação dos arguidos em primeira instância foi obtida por meio de presunção, di-lo o próprio Juiz Efigénio Baptista no dia da leitura da sentença. O Juiz Efigénio Baptista deveria ter recorrido ao princípio in dubio pro reo. Aliás, o próprio Ministério Público (MP) nunca deveria ter feito a pronúncia ante uma tamanha carência de provas.
Por outro lado, o TSR colocou-se numa situação melindrosa e predicamentosa ao deixar o recurso arrastar-se até os arguidos completarem a metade da pena sem resposta. Mesmo que o TSR decida responder o recurso condenando os réus em segunda instância, eles ainda continuam gozando do direito à liberdade condicional. Vão para casa na mesma.
Cabe ao TSR inocentar os arguidos, mandando-os para casa e acabar com esta situação. Todos sabemos o quê pretendido com esta encenação das dívidas ocultas e o plano gorou. Tenham a coragem e a humildade de mandar “os filhos de dono” para as suas casas, pois já foram sacrificados o bastante.
O Alcance do acórdão
Os juízes do Tribunal Supremo, mais do que decidirem sobre o pedido da Ângela Leão, sinalizaram algo extraordinariamente importante. Questionam, implicitamente, a legalidade da acusação, julgamento e condenação dos arguidos por um crime que não existia à data dos factos. Quando dizem que a liberdade condicional não deve ser condicionada por um crime que não estava tipificado, à data dos factos, estão, implicitamente, a dizer que os arguidos não deviam ter sido acusados, julgados e condenados por este crime. Esta afirmação tem o potencial peso e impacto em relação à decisão sobre o recurso do caso principal interposto pelos arguidos junto ao Tribunal Superior do Recurso (TSR). O Tribunal Supremo está, implicitamente, a sinalizar ao TSR sobre o seu sentimento em relação a este crime, e quiçá, sobre outros crimes.
Ademais, o TS está a dar a indicação de que para o julgamento e sentença dos arguidos o Juiz Efigénio Baptista devia ter tomado em conta o código penal de 2014, em tudo que fosse para o benefício dos arguidos.
Aliás, o TS está sendo bastante coerente consigo mesmo. Estamos lembrados que os arguidos teriam submetido um recurso de habeas corpus ao TS, antes do julgamento, onde, em resposta, o TS produziu um acórdão mostrando à 6ª Secção do Tribunal Judicial da Cidade de Maputo quais o crime contido na acusação valia a pena perseguir. E não parava por aí. Nesse acórdão didáctico, o TS orientava à 6ª Secção sobre os aspectos que deviam ser esclarecidos em cada um dos crimes, durante o julgamento. Nesse acórdão, o TS já indicava a inviabilidade de se julgar os arguidos pelo crime de branqueamento de capitais, assim como pelo crime de peculato.
Certamente, o leitor está recordado de como o Juiz Efigénio Baptista ignorou o acórdão do TS e avançou para julgar os crimes que o TS havia indicado a sua inviabilidade, pois careciam de enquadramento temporal e, no caso de outros crimes, havia sérias dúvidas de que tivessem sido cometidos. Com a arrogância que lhe é característica, Efigénio Baptista disse que não se vinculava pelos acórdãos do TS, e que ele era soberano, ignorando e passando por cima da jurisprudência dos acórdãos do TS como fonte de direito. Para além deste acórdão proferido antes do julgamento, há outro acórdão proferido pelo TS que dá conta que os dinheiros recebidos pelos arguidos não eram fundos públicos, e que por isso, os arguidos não podiam ser acusados e condenados pelo crime de peculato.
Mais importante, o Juiz Efigénio Baptista esqueceu que o TS é hierarquicamente superior ao Tribunal Judicial da Cidade de Maputo.
Deste role de factos comportamentais do Juiz Efigénio Baptista, a pergunta que surge, neste contexto, é a seguinte: se o Juiz Efigénio Baptista pôde ignorar os acórdãos do TS, o que fará o Juiz Manuel Guidione Bucuana enveredar ou não pelo mesmo caminho enveredado por Efigénio Baptista de ignorar os acórdãos do TS?
Para nós, a resposta está no tempo. Mudam os tempos, mudam as vontades! Em que tempo foram os arguidos acusados, julgados e condenados? E em que tempos serão decididos os recursos? Quer nos parecer que a verdade virá à tona. É por isso que muitas pessoas se enervam com a perspectiva de os arguidos saírem da cadeia e se defenderem estando fora da prisão. As pessoas que estão envolvidas na cabala de prender os bodes expiatórios das dívidas ocultas preferem ver os arguidos presos para poderem viver sossegados e expropriaram-se abusivamente dos seus bens e património, sem incómodo. E, com o tempo, estão se revelando – um a um.
Outro aspecto digno de realce é o facto de o Tribunal Supremo ter-se mantido coerente ao longo deste processo, pese embora achemos que, em algumas circunstâncias, o TS não tomou decisão, quando o devia ter feito. Comportou-se de forma perdulária, limitando-se em orientar o sentido da decisão aos tribunais recorridos, no lugar de tomar a decisão. Contudo, reconhecemos e nos submetemos à sua soberania por ser que são os juízes e conhecedores dos melhores critérios. Afinal, são o Tribunal Supremo.
Conclusão
Com tudo acima exposto, temos motivos de sobra para ficarmos indignados e, por conseguinte, questionar que força diabólica moveu a Procuradoria-Geral da República (PGR) a acusar os arguidos de um crime que não existia à data dos factos.
Mais grosseiramente caricato é entender como o Juiz Efigénio Baptista encontrou “a rationale” para condenar os réus. Mais ignominioso é perceber como os advogados-assistentes do Ministério Público (Ordem dos Advogados) ficaram naquela “Tenda” a assistir, em silêncio cúmplice, a estas atrocidades jurídicas. O mesmo se pode dizer em relação à Associação dos Juízes de Moçambique e a Magistratura Judicial e a do Ministério Público que se remeteram, até hoje, a um silêncio em relação a isto.
Continuamos atônitos perante o facto de quase toda a sociedade ficar indiferente quando cidadãos seus são injustiçados. Deixemos de lado as matérias de facto, pois essas ainda serão tratadas oportunamente, e nos concentramos nas matérias de direito. Os arguidos devem ser postos em liberdade, imediatamente, devido à extinção da prisão preventiva, ou devido ao cumprimento da metade da pena. Qualquer um dos argumentos encontra respaldo na lei.
Urgimos o TSR a fazer o que é correcto: soltar os arguidos das dívidas ocultas, sem delongas
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